terça-feira, maio 09, 2006

Só( , )no fim.

Fogo no Setor 5.

Nesse instante ele pensou "que bom não ter família", assim poderia correr para qualquer lado sem pensar que teria de carregar alguns com ele.

Correu.

Setor 6, Setor 7, Setor 8, Setor 9 onde ficava a biblioteca, e pensou em levar alguns volumes consigo. Gastou uns 10 minutos para pensar o que levaria, mais uns 10 para pegá-los e mais uma eternidade para tentar encaixá-los, todos, em algum orifício da sua roupa. Deixou tudo de lado quando sentiu a onda de calor entrando. Tão inteligente, na verdade um gênio, considerado prodígio por todos na escola e família, não conseguia nem escapar de um incêndio... Mas foi inteligente o suficiente para perceber que os Setores haviam acabado, só existia a saída e não sobreviveria. Estava a frente de todos, chegou lá antes, em todos os sentidos. Ajudou a construir muitas das conexões e caminhos daquele lugar. Criou dezenas de sistemas de proteção, prevenção, privação.... e um a um, viu todos falharem e se desligarem conforme o fogo ia se alastrando, mas o mais importante é que ele chegou lá antes de muitos.
O resto das pessoas já estavam cruzando o penúltimo setor. Ele ouviu os gritos, o choro das crianças, os pais pedindo ajuda para saírem com suas famílias e bichos e plantas e roupas e TVs e computadores. E nesse momento ele reforçou seu pensamento de que não carregava nada nem ninguém por opção, e que seria mais fácil sobreviver se estivesse sozinho tendo que alimentar a si próprio, com as mão livres para se agarrar onde fosse necessário, embora soubesse que não teria mais nenhum lugar para se agarrar, e mais do que tudo não teria que explicar a ninguém porquê o fim chegou. E realmente chegou. Ou ficava prostrado diante das chamas ou encarava a vastidão do espaço.

Não queria morrer como os outros, ele não era como os outros. Vestiu o traje e se lançou no espaço. Esse não seria um passeio de reparos na parte externa da estação, seria um exílio. A última visão tinha que ser essa, sua criação, a Estação. E ia ficar olhando para ela até acabar, até fechar os olhos, não piscava com medo de não abri-los mais. Tinha ainda algumas horas de oxigênio mais ou menos três horas de vida. É confortante saber quando você vai morrer, ele pensou. As dúvidas acabam, o medo de algo acontecer acaba, tudo tem hora para acabar, sem sobrevida e a partir daí as coisas fazem mais sentido, são mais objetivas.

Dalí, do vácuo, não deveria se ouvir mais nada, nem gritos, nem choro, nem o fogo crepitando, mas seu coração batia tão forte e alto que não dava para ignorar, nenhum vácuo poderia abafar o som, e como se por magia ou erro humano na teoria de propagação de som no vácuo, os sons foram chegando. Uma criança assustada perguntando o que estava acontecendo; uma senhora falando que Deus salvaria a todos, um coro em prece, um homem que não largava sua televisão na hora do noticiário, uma voz dizendo eu te amo e adeus... Adeus para ela também.

E o arrependimento chegou, gostaria de estar segurando a mão dela agora, gostaria de olhar fundo nos olhos escuros dela, olhos que nunca conseguiu entender. Agora entendia, olhos de quem nunca teve seu amor retribuído. Ele nunca retribuiu tanto afeto dado por ela.
E não daria mais tempo.

Como é insuportável saber que se vai morrer. Ter uma grande descoberta, daquelas que revolucionariam o modo de vida, e não poder dar a devida importância. Não faz sentido se preocupar com algo que não fará mudar sua atual situação. Tudo irá acabar sem solução, sem palavras de amor.

Viu à distância a Estação Espacial se desmantelar e seus pedaços sendo pulverizados no espaço. Nada existiu na verdade. Não há mais o conceito, não há mais o desenho original, não há vestígios de vida. Nada a se fazer. Não há ar, e nem fogo dentro dele. Os olhos permanecem abertos e fixos. Imóveis e turvos.

Viveu-se o período de uma vida, nada mais.

Um comentário:

Claudio Rosa disse...

Um triste, mas belo olhar.
Há quem diga que existe beleza na tristeza.
Há quem diga.
Mas há quem escancara.


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