domingo, agosto 24, 2008

C O M A


Quarto de hospital. Uma mulher em coma. Numa cadeira ao lado da cama outra mulher um pouco mais velha.

Mulher:
Hoje decidi vir, te ver. Dar uma checada só. Deve fazer uns meses que não falo com você. Falar, falar mesmo, faz anos. Você, nesse estado. Mas eu sei que não é culpa sua. Te colocaram aqui. De novo.

Esse livro que você lia... eu peguei pra ler também. É mesmo muito bom. É realmente a biografia do pai daquela escritora alemã, Hellen Stalk? Ainda não consegui chegar no final, mas promete grande surpresas... Em falar de surpresas sabe quem eu encontrei na estação de trem um dia desses? Aqueles dois estranhos, amigos sei lá.... ( Silêncio ) Lembra? Os dois homens, com dez mil malas, que a gente vivia observando e discutindo se eles realmente se dariam conta que eles são um só. Puxa, eu gostaria que você pudesse ver... eles entraram no trem juntos, e acho que dessa vez eles foram para o Norte juntos.

Ah, eu estive na sua casa nesses dias, e... alimentei a gata pra você, tá. Ela vai bem... o problema é o pássaro... Ele vai mal. Enjaulado, triste com a promessa que ele seria libertado. Mas não deu tempo, né. Você paralisou antes de abrir a gaiola. Mas seguindo suas recomendações, o máximo que eu fiz foi deixá-lo aquecido.

Eu tive um sonho louco outro dia. Lembrei de você porque você sempre foi ligadona em sonhos estranhos. Presta atenção nesse: era um quarto escuro... bem escuro, onde eu só escutava duas pessoas falando. Daí uma luzinha se acendeu e tinha um relógio marcando 5:55. Como naquela música que você me mostrou um dia e a gente chorou juntas. Bom, daí a luz do quarto foi ficando cada vez mais aberta, como no cinema, e apareceu no canto do quarto uma garota toda estrupiada, maquiagem borrada, roupas rasgadas, meio que sangrando etal... e quando eu dei por mim, ela... bem... não vai rir né... achando que eu sou pervertida ou coisa parecida... mas ela estava olhando um casal fazendo amor... amor nada! Era uma trepada animalesca mesmo. Daí, menina... eu ouvi a sua voz na boca da garota estrupiada, que terror! Acordei super assustada, olhei no relógio e percebi que meu alarme não tinha tocado e tive que sair correndo pro trabalho. Daí acabei esquecendo do sonho. Isso faz um mês, acho. Mas só agora me lembrei, olhando pra você. Será que você ainda sonha com alguma coisa?

Sabe quem perguntou de você? Uns colegas da faculdade. Eu tive vergonha de falar do seu estado, e disse que você estava exilada escrevendo. Exilada? Foi essa palavra que eu usei? Acho que eu disse que você estava viajando para estudar coisas novas. Não, viajando não... na correria por coisas novas. Mas... Eu acho que eu já falei mentiras demais sobre você.

Entra Médico para checar a mulher em coma


Médico:
Bom dia. Você...

Mulher:
Amiga. De muitos anos.

Médico:
Ela não recebe muitas visitas.

Mulher:
Pois é, eu sei. Ela prefere assim. Antes também era assim. Nós duas conversávamos por horas e era o suficiente. Então eu venho, dou uma olhadinha nela, trago umas flores, converso um pouco e é o suficiente.

Médico:
Você acha que ela pode te ouvir?

Mulher:
Eu é quem deveria fazer essa pergunta para o senhor , não acha? Ela pode...

Médico:
Não sei.

Mulher:
Então eu posso estar fazendo papel de besta aqui. Falando, falando, falando para um vegetal. Como se fosse falar para aquela planta alí no vaso. Inútil...

Médico:
Dizem que falar com planta ajuda.

Mulher:
Não me vem com essa... A planta não vai crescer mais feliz se...

Médico:
Você vai crescer mais feliz.
Estável. Sem mudanças. Sem sofrimento. Não reage aos estímulos ao redor. Interessante....

Mulher:
Totalmente entregue. Parece até que ela quer continuar assim.

Médico:
No estado dela, eu diria que ela não tem como querer mais nada. Bem, cuide de sua amiga aqui. Bom dia.

Mulher:
Não sei mais se vale a pena.

Mulher pega um livro de dentro da bolsa e começa a ler.


Mulher:
Que estupidez. É isso que você quer? É esse seu fim? Ficar aí, sendo o foco da piedade dos outros? Saiba que mesmo sem querer eu estou tomando o seu lugar, sua casa, seu emprego, sua família. Quase não te enxergam mais em mim. Pouco a pouco as pessoas estão esquecendo de você. Eu vou esquecendo de você. E você é tudo o que eu tenho. Acorda caramba! Volta pra mim. Eu tenho um milhão de estórias pra dividir com você. Eu preciso tanto que você reaja, que me mostre o quanto tudo aquilo que a gente queria ainda faz sentido. Ainda é possível! Levante por favor, eu pego na sua mão e te levo pra passear de novo. A gente vai olhar os ninhos dos pássaros e dar nome a todos eles. Te levo pra ver os velhinhos e seus delicados jardins. Eu e você, nossa força junta seria capaz de provocar avalhanches na montanha mais calma, erupsões no vulcão mais adormecido. Essas estórias não acabaram! Você tem que acordar!

Escuro. Silêncio.
Num corredor, mulher mais nova aguarda de costas com uma mala no chão. Mulher mais velha e médico conversam na porta do quarto.

Médico:
Leve o vaso pra ela. Coloque ao lado da cama dela e ensine a ela a falar com as plantas.

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